Manoel, Stella e um café na cama
Falar com passarinhos é fácil demais quando não precisamos fazer nada
Querida pessoa que me lê,
Aconteceu de novo. E tem acontecido com certa frequência. Primeiro vem aquele sentimento que atinge o alto da barriga, aquele grito abafado que não dói, mas avisa: tem algo errado aqui. Parece certo, mas tem algo errado aqui. Aquilo que a gente acredita ser o ideal e perfeito, ilusões que escorrem pelos dedos tão rápido, que a gente nem sempre processa direito.
Estive em Campo Grande (MS) na semana passada e descobri que era possível visitar a casa do Manuel de Barros, poeta que dia sim, dia não aparece com algum verso bonito compartilhado por alguém no meu Instagram. A visita precisa ser agendada e uma amiga muito querida prontamente fez isso.
Cheguei atrasada na visita que começou na varanda da casa de tijolos no centro da cidade escondida por um muro alto com uma explicação da guia sobre a vida dele. Quem era Manoel? Eu não sabia até então.
Eu tenho certa obsessão sobre como escritores vivem, a escrivaninha, o livro na estante, aquela história de como vivem e do que se alimentam. Aliás, como escritora, imaginar a casa de quem escreve faz parte de um exercício que eu gosto muito, um teto do seu, é o que eu tento construir, sempre. Já visitei as casas do Jorge Amado e da Zelia Gattai no Rio Vermelho, Cora Coralina em Goiás Velho e Pablo Neruda em Valparaíso.
Bem, Manoel era fazendeiro, já desconfiava disso. Herdou terras no Pantanal do pai. Manoel era um avô, não só no jeito que ele é retratado. Ele era como muitos dos avôs que já conhecemos. Daqueles que sentam no mesmo lugar do sofá por anos até fazer marca, que tomam uísque com uma pedrinha de água de coco todos os dias e são servidos. Daqueles que são servidos e cuidados por uma mulher a vida toda. Seria Manoel meu avó? Seria Manoel tão clichê assim?
Foi quando a sensação estranha no alto da barriga apareceu. Escutamos a explicação, os hábitos, e escutamos sobre dona Stella. Dona Stella recebia quem chegava na porta, Dona Stella sentava naquela cadeira de ferro e lia tudo o que ele recebia e aí então passava pra ele o que considerava bom. Dona Stella que resolveu voltar pra Campo Grande. Dona Stella que cuidava de tudo. Dona Stella que levava o café da manhã todos os dias na cama pro Seu Manuel junto com o jornal. Ah, um ato de amor.
Quando chegamos no segundo andar onde ficava o escritório dele, a escrivaninha, a caixa de lápis, as borrachas, o armário com os famosos cadernos (que não estavam exposto). Minha amiga comentou comigo baixinho: “Assim é fácil ser escritor, né? Com alguém fazendo de tudo pra você o tempo todo. Cadê a escritora que consegue isso?”.
Respirei de alívio, ri, e pensei: “ufa, então não era só eu”. Não era só eu que tava achando tudo aquilo meio errado. Um cara foda, que escrevia coisas lindas, igual a todos os outros. Uma cara que achava que ser diferente era pedir pro arquiteto fazer uma casa de tijolos na vertical (o que não foi possível, alías). Mais um cara que tinha todo o tempo do mundo e uma mulher sobrecarregada.
“Ah, mas ela fez isso porque queria, fez isso por amor”. Disse quem, sociedade?
Pois bem, uma visita. E adeus, admiração por Manoel de Barros. Continuo achando a escrita genial? Sim. Mas também quero nada menos do que café na cama todos os dias se algum eu me casar de novo.
“Manoel estudava todos os dias cinco palavras do dicionário, escolhia uma, depois pegava duas pra cima, duas pra baixo”. Aqueles pequenos hábitos que a gente adoraria ter tempo pra ter. Tempo: um privilégio dentre muitos.
Mentira, pessoa querida que me lê, não quero uma Stella. Não sei nem se quero café na cama todo dia porque eu gosto de fazer meu próprio café, meu ovo e minha tapioca do meu jeito. Se eu tiver alguém do meu lado, quem sabe um dia também numa casa de tijolos num quintal nem tão grande assim (essa é outra decepção da visita), eu quero alguém que caminhe do meu lado, quero que a gente divida o tempo, as tarefas e as coisas bonitas, que faça poesia juntos, todos os dias.
Manoel escreveu: “A palavra amor anda vazia. Não tem gente dentro dela”. Pois na minha palavra amor vai ter um novo mundo, um novo escrito, um quintal inteiro e abundante, vai ter muita coisa.
Peço desculpas aos Manuel lovers que decepcionei com essa carta.
Mas, é o que temos pra hoje.
AVISO: essa é a última confissão, carta, desabafo, newsletter gratuita desta plataforma. A partir da semana que vem vamos ter dois envios, um de confissões e o outro sobre a escrita do caderno, toda semana uma pergunta para ser respondida no seu caderno/diário.
Vou começar um projeto de arte e preciso de recursos, então considera apoiar essa artista/escritora com apenas o valor de uma latinha de cerveja vendida pelo ambulante do carnaval!
É isso, pessoa querida que me lê, até a próxima.
Beijos e com amor,
Tati