Eu não sei se quero mais escrever esse livro
Se até Elena Ferrante desistiu... eu também posso
Eu não sei se quero mais escrever esse livro.
Essa é a última frase escrita num arquivo que eu comecei a escrever em junho de 2023. Essa frase apareceu no espaço em branco em janeiro de 2024. Anteontem, 19 de fevereiro de 2024, entendi o que há muito já sabia: não quero mais escrever esse livro.
O livro era sobre uma mulher com mais de 40 que tem um romance de fim de semana, fica grávida e resolve fazer um aborto. Mesmo quando eu escrevo isso agora eu não sinto vontade alguma de continuar essa história. Pelo contrário, sinto até uma certa repulsa. Sinto um peso no peito, o mesmo que sentiria se uma pedra quisesse me manter deitada no chão.
Foram 50 páginas de muitas palavras, e confesso, até gostei do que estava escrito. Mas, depois de um tempo não me identificava com mais nada daquilo. Imprimi tudo outro dia pra ver se conseguia me conectar, mas os papeis impressos seguem empoeirados debaixo de uma pilha de livros na minha escrivaninha. Nem reler eu consegui.
Não sei explicar isso muito bem. Talvez eu tenha perdido o timing, talvez a faísca tenha apagado. O livro começou a desparecer de dentro de mim e eu nem percebi. Escrevia com espaços muito longos e depois sofria demais pra voltar pra aquelas páginas. E escrever não pode ser assim. Escrever é difícil, sim a gente morre um pouco no processo, mas não pode ser sofrimento. Isso é um mito horrível em torno do ofício da escrita. E eu não quero isso pra mim. Nunca quis.
E não era hora de soltar, dar um tempo e voltar (fiz isso diversas vezes nesse processo), mas de desistir mesmo.
No livro de cartas e entrevistas, Frantumaglia, Elena Ferrante escreve para editora dizendo que tinha terminado um livro sobre trabalho. Compartilho aqui um trecho (que inclusive usei no meu curso Escreva como uma mulher):
“Cara Sandra,
Devo-lhe uma explicação. Você não receberá o texto que prometi mandar. Vi que você já se empenhou em encontrar um título (gosto de As trabalhadeiras, descarto As trabalhadoras), mas mudei de ideia. A história ainda não me parece pronta para ser lida. Na semana passada, eu mesma não consegui ler sequer uma linha dela sem sentir náuseas. Preciso de tempo para voltar à história com calma e entender o que fazer com ela. Assim que tiver tomado uma decisão, aviso a você.
A esta altura, penso no ato de escrever como uma longa, extenuante e prazerosa sedução… A pergunta de cada história sempre é: essa é a história certa para agarrar aquilo que jaz em silêncio no fundo de mim, aquela coisa viva que, se capturada, se expande por todas as páginas e lhes dá alma? A resposta é incerta, mesmo quando chegamos ao fim de uma história. O que aconteceu nas linhas, entre as linhas? Muitas vezes, depois de esforços e prazeres, não há nada nas páginas — histórias, diálogos, reviravoltas, só isso —, e ficamos aterrorizados por nosso próprio desespero.
Neste último caso, lamentarei muito por decepcioná-la de novo. Por outro lado, acho que, para quem ama escrever, o tempo da escrita nunca é desperdiçado. E, afinal, não é de livro em livro que nos aproximamos do livro que queremos de fato escrever?
Até breve, Elena
NOTA
Carta de 18 de maio de 1998. A editora nunca recebeu para leitura o romance mencionado.
Não, Elena, essa não é a história certa para agarrar aquilo que jaz em silêncio no fundo de mim.
Nesses últimos seis anos que tenho vivido como escritora integral, desisti de muitos textos e três livros. Um deles ainda vive em mim e, de vez em quando, uma ideia volta e incluo ela nas minhas anotações. Também uso parte deles em outras coisas. Nada está perdido quando a gente escrever, Elena tem razão. É a costura ou a captura das pedras preciosas que fazem da diferença. Você sabe o que vale a pena seguir em frente e o que não. Sempre sabe. E não podemos ter apego a nada, nenhum texto, nenhuma palavra. Na escrita e talvez na vida, não é mesmo?
É importante saber ideias desaparecem sim com o vento e nem todas as histórias precisam ficar. Mas quando a gente se agarra a elas e elas se misturam com a gente, a mágica acontece. E isso é sim uma sorte grande. E é bom demais também poder ficar.
Até a próxima,
Tati
Para completar
Compartilho aqui um poema da Wislwa Szymborska (que também amo e uso nas minhas aulas de escrita) sobre como é difícil manter uma ideia nas mãos:
Ai Tati. Às vezes acho que bloqueio de escritor nada mais é do que insistir num projeto que já morreu. Certeza que agora que vc abriu espaço, outra história vai surgir, deliciosa de escrever e de ler, como seu último livro. :)
Adorei ler isso, Tati.
Eu tenho contos inacabados que quero acabar, mas alguns acho que já estão nesse limbo de que não soltei, mas já foram.